Erros no Processamento e Leitura dos Cartões em Gel – Efeito da Dose

23, January de 2021

QUANDO O RESULTADO NEGATIVO NÃO É UM NEGATIVO DE VERDADE: EFEITO DE DOSE E VARIAÇÕES

O que afinal de contas é o efeito de dose e porque ele pode induzir a erros na leitura?

Efeito de dose é um fenômeno de ordem quantitativa que ocorre em pacientes heterozigotos (alelos diferentes herdados dos pais), onde a expressão desigual de um antígeno na superfície da hemácia, pode “esconder” a presença do outro.¹ Um indivíduo homozigoto herdou o mesmo antígeno de ambos os pais, e portanto, não está sujeito ao efeito de dose.

“Denomina-se homozigose ou antígenos em dose dupla quando a herança de alelos idênticos determina uma maior expressão do antígeno na membrana da hemácia.”

(Manual Técnico em Hemoterapia)²

Os antígenos podem, ou não, possuir pares antitéticos. Um par antitético são dois antígenos diferentes que pertencem a um mesmo sistema, e que disputam pelos mesmos “locais” para expressão na superfície da hemácia. No caso, um indivíduo heterozigoto herda um antígeno de um dos pais, e seu par antitético do outro pai.

Consequentemente um paciente pode ter ambos os antígenos, mas devido ao efeito de dose, um deles está expresso em maior quantidade na superfície da hemácia em detrimento de uma menor expressão do outro. Entre os principais antígenos que estão sujeitos ao efeito de dose, podemos citar os: Sistema Rh (Ee, Cc), Sistema Kell (Kk, Kpa e Kpb, Jsa e Jsb), Sistema Kidd (Jka e Jkb), Sistema Duffy (Fya e Fyb), Sistema MNS (MN e Ss) e Lutheran (Lua e Lub).³

Além de estarem sujeitos ao efeito de dose, estes antígenos estão entre os mais imunogênicos e juntos respondem por aproximadamente 91% dos casos de reação hemolítica tardia.4 Anticorpos contra o sistema Rh, Kell, Duffy e Kidd merecem atenção redobrada pois são reativos a 37°C (temperatura corporal) e causam hemólise, ou seja, destruição das hemácias transfundidas. Este é um dos muitos motivos pelos quais a portaria recomenda que seja feita a pesquisa em doadores ao menos para RhD e Kell, e pacientes que precisarão de múltiplas transfusões recebam apenas bolsas com fenotipagem estendida:

“É recomendada a realização da fenotipagem de antígenos eritrocitários dos sistemas Rh(D,C,c,E,e) e Kell(K1) nas amostras de sangue de doadores, conforme demandas do serviço de hemoterapia.”

(Art. 124 da Portaria 158/2016 do Ministério da Saúde)5

“§ 18º Para pacientes que não apresentam anticorpos antieritrocitários que estão ou poderão entrar em esquema de transfusão crônica, recomenda-se a utilização de concentrado de hemácias fenotipadas compatíveis, principalmente para os sistemas mais imunogênicos (Rh, Kell,Duffy,Kidd e MNS), sob avaliação médica.”

(Art. 178 da Portaria 158/2016 do Ministério da Saúde)5

 

O efeito de dose pode ser um dos responsáveis por um resultado falso negativo. Não houve erros do colaborador no manuseio dos materiais ou em seguir o procedimento operacional padrão, e sim uma baixa oferta de sítios de ligação nas hemácias para reagir com os anticorpos do paciente.

O efeito de dose agrega um risco á transfusão pela dificuldade de detecção, por esta razão, o treinamento de pessoal e a oferta de hemácias homozigotas pelo menos nos antígenos sujeitos ao efeito de dose em painéis é tão importante.6-7

Conforme orientação da AABB, ao realizar um painel de hemácias para um paciente, a menos que exista uma hemácia teste em homozigose negativa, ou outras três distintas em heterozigose com igual resultado negativo, não se pode eliminar um antígeno como suspeito de sensibilização. Infelizmente, nem sempre os lotes de painéis de hemácias oferecem variabilidade suficiente para atender esta orientação, portanto, o colaborador precisa estender sua pesquisa com hemácias selecionadas de sua hemateca para excluir mais antígenos que não puderam ser eliminados, ou, proceder com a transfusão escolhendo uma bolsa de sangue que respeite os antígenos identificados como responsáveis por sensibilização, e os que não puderam ser excluídos.7

Além de que, este olhar crítico de diferenciar resultados negativos no painel provenientes de hemácias homozigotas ou heterozigotas pode ser complexo de visualização e compreensão para colaboradores novos, que tão logo observam o resultado negativo no cartão e imediatamente já desconsideram os antígenos da hemácia teste como suspeitos da sensibilização, e mesmo para colaboradores experientes representam um risco após longos turnos de trabalho, quando o nível de atenção á detalhes cai por conta do cansaço.

Vale recordar que a SHOT UK aponta que entre 2013 e 2018, ocorreram 1400 casos de reações adversas por conta de erros laboratoriais. Destes, aproximadamente 8% (110 casos) foram erros de interpretação e erros técnicos.8

O polimorfismo é um fenômeno que pode ocorrer em qualquer sistema. Por alguma razão, ocorre um erro na sequência do código genético que gerará o antígeno, e por conta deste erro (uma deleção, inserção, uma troca de base nitrogenada no códon, etc) nenhuma estrutura se forma ou uma nova estrutura híbrida surge, caracterizando o polimorfismo ou a variação.

É preciso tomar cuidado com essas mutações, porque elas podem, ou não, interferir em um tratamento se a pessoa for doadora ou paciente.

Um exemplo, seria a mutação Duffy GATA. Neste, ocorre uma mutação na região promotora e o antígeno Fyb não é expresso apenas nas hemácias, mas continua sendo expresso normalmente em todos os outros tecidos. Quaisquer testes realizados em tubo ou cartão gel invariavelmente resultariam como Fyb negativo porque não tem antígeno Fyb nenhum para ser reativo na superfície da hemácia, porém, o paciente pode receber transfusões Fyb positivas normalmente, e não irá produzir anticorpos!9

Se a pessoa em questão for uma doadora e foi fenotipada como Fyb negativa, não haveria problema. A pessoa não tem o antígeno Fyb expresso nos eritrócitos, então se um paciente verdadeiramente Fyb– receber essa doação, ele não seria aloimunizado e nem teria reação transfusional por conta deste antígeno. Mas se este indivíduo fosse um paciente, saber previamente que ele é uma mutação GATA pouparia muito tempo dos funcionários de um banco de sangue, que ficam fenotipando dezenas de bolsas procurando uma Fyb negativa para transfusão, sendo que como ele TEM esse antígeno (só não é expresso nas hemácias) ele poderia receber qualquer bolsa Fyb positiva ou negativa. Ter esta informação só é possível por meio da genotipagem, e esta é uma tecnologia cara e disponível em poucos centros.

Agora, falaremos de um sistema onde as variações costumam ser mais “problemáticas”. As variantes podem ocorrer em qualquer sistema, mas o RhD e Kell são os mais polimórficos, os mais comuns de serem encontrados na rotina, e variam conforme as etnias. Vale recordar que depois do sistema ABO, o RhD é o mais importante em Medicina Transfusional.10

“Existem basicamente três mecanismos moleculares de negatividade do RHD: deleção total do gene RHD, pseudogene RHD e gene híbrido, que variam de frequência de acordo com a raça em questão. Nos caucasianos, encontrado em 15% a 17% da população, o mecanismo mais comum é a completa deleção do gene RHD. (…) A deleção do gene RHD é encontrada em apenas 18% da população afrodescendente e 60% dos asiáticos. A variante mais comum nos asiáticos D negativo é fenótipo Del RHD (K409K), ou seja, 10% a 30% possuem o gene RHD intacto(…) Nos afrodescendentes com fenótipo RhD negativo, o mecanismo mais comum é a presença do pseudogene RHD(RHDψ), associado ao alelo ce no RHCE.”

(Bases Moleculares do Sistema RH e sua Aplicação em Medicina Transfusional)

A reatividade nas pesquisas dependem de uma reação em chave entre antígeno e anticorpo. Ao entrar em contato com um antígeno híbrido ou de fraca expressão na superfície da hemácia, o anticorpo presente no soro pode apresentar diferentes reações (0-2+ em soros IgM e 2-4+ em soros IgG)11 ou não ser reativo caracterizando um falso negativo, como se a pessoa fosse RhD- e na verdade ela é sim RhD+!

70% dos afrodescendentes inicialmente tipados como RhD- eram na verdade pseudogenes. O D híbrido é a segunda variação mais freqüente em doadores afrodescentes e asiáticos, logo depois respectivamente, das variações pseudogene e Del. 10

Essas variações impactam diretamente no tratamento de pacientes e doadores.

D fraco e Del são variações quantitativas. Apesar de ambos terem o antígeno RhD (RhD positivas), este está expresso em baixa quantidade ao ponto de se receberem em transfusão hemácias normais, produzirão anticorpos contra elas. Nada impede que sejam doadores, porém, devem ser identificados e rotulados como RhD positivo.

Na variação pseudogene, ocorre uma mutação no código genético dando origem a um stop códon precoce, ou seja, geneticamente a pessoa é RhD positiva, porém quando se inicia o processo de transcrição/tradução ele é interrompido antes que a proteína seja concluída e nada chega a ser expresso na superfície da hemácia.

D Parcial e D híbrido são variações qualitativas e estruturais no antígeno. No D parcial a mutação presente em seu código genético dá origem ao antígeno D com menos epítopos que o normal, logo, se como paciente recebe transfusão de hemácias normais e completas desenvolveria anticorpos contra as mesmas, e como doador, como o sistema imunológico precisa reconhecer um antígeno como igual/idêntico a um próprio, o recebedor desta transfusão também poderia vir a desenvolver anticorpos. Uma pessoa D parcial deve como D- para receber transfusões. Na mutação D híbrida, partes do antígeno D se fundem e entrelaçam com o CE criando uma nova estrutura, aberrante e mais complexa. Não podem receber doações D+ pois os epítopos D normais lhe são estranhos e desenvolveriam anticorpos contra eles, logo, só podem receber hemácias D negativas.

*Letícia Farias Borges – Engenheira de Produção e pós graduada em Hemoterapia.

 

BIBLIOGRAFIA

1 – Blood Bank Guy. Glossary: Dosage Effect. Retrieved from: https://www.bbguy.org/education/glossary/gld15/ Acessado em 23/01/2021

2 – MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde Departamento de Gestão da Educação na Saúde (2013). “Técnico em Hemoterapia”

3 – Oliveira et al (2013) “Conceitos Básicos Aplicados em Imuno Hematologia”. Retrieved from:  http://www.epsjv.fiocruz.br/upload/Material/L226.pdf. Acessado em 23/01/2021

4 – Silva, JM (2016)  “Fenotipagem eritrocitária em doadores de sangue no HEMOPI (Teresina-Picos)-PI e no Hemocentro Regional do Crato-CE”. Retrieved from http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/19368/1/2016_dis_jmsilva.pdf. Acessado em 23/01/2021

5 – BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n° 158, de 4 de Fevereiro de 2016. Redefine o regulamento técnico de procedimentos hemoterápicos. Retrieved from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2016/prt0158_04_02_2016.html  http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2016/prt0158_04_02_2016.html. Acessado em 23/01/2021

6 – British Committee for Standards in Haematology. “Guidelines for pre‐transfusion compatibility procedures in blood transfusion laboratories”. Retrieved from: ttps://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/j.1365-3148.2012.01199.x. Acessado em 23/01/2021

 7 – Karim, Sadiqa. Transfusion Medicine and Hemostasis (Second Edition), 2013. Chapter: “Antibody Identification”. Retrieved from: https://www.sciencedirect.com/topics/immunology-and-microbiology/erythrocyte-antigen. Acessado em 23/01/2021

8 – SHOT. “Procedure based errors – biggest cause of serious adverse events” Retrieved from: https://www.shotuk.org/wp-content/uploads/myimages/Procedure-based-errors-BBTS-abstract-2019-final.pdf. Acessado em 23/01/2021

9 – Jens, Eduardo, Pagliarini, Thiago, & Novaretti, Marcia C. Z.. (2005). Sistema de grupo sangüíneo Duffy: biologia e prática transfusional. Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, 27(2), 110-119. https://dx.doi.org/10.1590/S1516-84842005000200011. Acessado em 23/01/2021

10 – Nardozza, Luciano Marcondes Machado, Szulman, Alexandre, Barreto, Jose Augusto, Araujo Junior, Edward, & Moron, Antonio Fernandes. (2010). Bases moleculares do sistema Rh e suas aplicações em obstetrícia e medicina transfusional. Revista da Associação Médica Brasileira, 56(6), 724-728. https://doi.org/10.1590/S0104-42302010000600026   https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-42302010000600026&lang=pt. Acessado em 23/01/2021

11 – BIO RAD. “A expressão fenotípica do antígeno D pode variar quantitativamente e qualitativamente.”  file:///C:/Users/leticia.borges/Downloads/rh2016-parte4.pdf. Acessado em 23/01/2021

 

 

 

 

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