Controle de Qualidade Hemácias – Riscos de erros na fenotipagem de doadores

10, July de 2020

O artigo 121 da Portaria n° 158, de 4 de Fevereiro de 2016 da ANVISA define:

Art. 121. O registro de uma tipagem ABO e RhD prévia de um doador não serve para a identificação das unidades de sangue subsequentemente doadas pelo mesmo doador.

  • 1º Novas determinações devem ser realizadas a cada doação.
  • 2º Em caso de doações prévias, deve ser comparada a tipagem ABO e RhD com o último registro disponível.

Quando observamos esta determinação da Portaria 158 é impossível evitar o questionamento: porque testar de novo, se já tenho os resultados no histórico?

Mas antes de discutirmos mais sobre o assunto seguem algumas definições:

  • ABO: o sistema ABO são classificações do sangue humano nos quatro tipos existentes: A, B, AB e O.
  • Antígeno: estruturas capazes de desencadear a produção de anticorpos.
  • Anticorpos:são glicoproteínas, também chamadas de imunoglobulinas, que possuem como principal função garantir a defesa do organismo.
  • Fator Rh: é um grupo de antígenos que determina se o sangue é Rh positivo ou negativo.
  • Fenótipo: conjunto de características observáveis de um organismo.
  • Hemáciassão células sanguíneas também conhecidas como glóbulos vermelhos ou eritrócitos que exercem importante papel na oxigenação dos tecidos, sendo também responsáveis pela cor vermelha do sangue.
  • Plasma: corresponde à parte líquida e reúne os elementos celulares: hemácias ou eritrócitos, leucócitos e plaquetas.
  • Sorologia: Estudo realizado no plasma, em busca de anticorpos contra doenças transmissíveis.
  • Tipagem Sanguínea: é o processo de coleta e análise do sangue do paciente para identificar a qual grupo sanguíneo ele pertence.

Na sorologia, é evidente que o estilo de vida do doador ou o ambiente podem interferir nos resultados de uma doação para outra, pois são identificados presença de bactérias (Sífilis), vírus (HIV, HCV, HBV, HTLV…), parasitas (Chagas), imunidade adquirida por vacinas, etc. As hemácias, entretanto, deveriam permanecer as mesmas. Então qual a necessidade da re-testagem obrigatória se o doador já é conhecido?

Esta resolução da portaria, que a princípio parece ser redundante, na verdade representa uma busca pela melhoria contínua de se oferecer à um paciente o melhor produto, e de certificar-se sobre o que está sendo afirmado na etiqueta da bolsa.

O processo de identificação do fenótipo do doador consiste em fazer uma série de testes cruzando as hemácias do doador com soros comerciais direcionados a antígenos específicos , e expor o plasma do doador carregado de anticorpos com hemácias comerciais, o resultado do teste usando o plasma do doador deve ser uma confirmação dos resultados observados nos testes utilizando as hemácias do mesmo. Quando ocorre uma reação antígeno-anticorpo nos cartões em gel, ocorre uma aglutinação de hemácias, que são incapazes de vencer a resistência do gel durante a centrifugação e chegar ao fundo do poço do cartão (resultado negativo).

 

Uma pessoa pode candidatar-se para doação de sangue pela primeira vez desde os 16 até os 70 anos de idade, contudo, a idade do doador pode impactar na identificação do seu tipo sanguíneo. No entanto, conforme o avanço da idade o título (concentração) dos anticorpos no sangue cai progressivamente, gerando resultados confusos, ou, falso negativos.

“Os anticorpos do sistema ABO aparecem espontaneamente depois dos 3-6 meses de idade, com pico de produção dos 5 aos 10 anos de idade e com diminuição progressiva na velhice.” (FIOCRUZ)²

Também existem outras variáveis que podem impactar na identificação incorreta do fenótipo do doador, pode-se apontar como principais: variantes ou subgrupos, e variabilidade dos reagentes.

Vale recordar que quando falamos de soros MONOCLONAIS, nos referimos a um soro composto de clones de UMA ÚNICA célula mãe, que era direcionada a um antígeno específico³. Este anticorpo específico foi isolado, replicado em larga escala, validado e distribuído comercialmente, porém sua ESPECIFICIDADE segue sendo contra uma região do antígeno inicial.

O sistema RhD é o mais polimórfico dentre os sistemas sanguíneos, dependendo da mutação que o doador tenha em sua hemácia, um soro destinado aos antígenos tradicionais deste sistema pode falhar em causar reatividade, caracterizando o resultado falso negativo.

Além dos polimorfismos, o sistema RhD também é sujeito a quantidade de sítios de reação disponíveis na superfície da hemácia, este fenômeno é conhecido como D-Fraco. Os antígenos são expressos de forma homogênea ao longo de toda a hemácia, neste caso ocorre um polimorfismo quantitativo e são expressos em média entre 10-30% do que uma hemácia normal deveria ter (~33000 antígenos)5-6, pela baixa oferta de “locais” onde o soro possa se ligar, não há reatividade ou reatividade insuficiente, e o resultado do teste também é um falso negativo. Logo, o doador é erroneamente identificado com o fator Rh NEGATIVO, quando na verdade é Rh POSITIVO.

O sistema Rh é o mais imunogênico dos sistemas eritrocitários, é responsável pela maioria das sensibilizações, e pode causar reações transfusionais graves. A população brasileira é mestiça, a incidência dos fenômenos do D-Fraco ou variantes de D, é respectivamente de ~1% para caucasianos e 3% num estudo realizado na Unicamp4. Portanto, lidar com estas variáveis na fenotipagem é parte da rotina dos bancos de sangue.

“Esses novos alelos aberrantes de Rh não somente produzem proteínas hibridas, regiões de RhD unidas com RhCE levando a perda de epítopos de D, como também geram novos antígenos.” (Nardoza et al)

 O sistema ABO também está sujeito a polimorfismos!4

  • Já foram descritos 53 variâncias para o tipo A, destes, 7 subgrupos são os principais: A1, A2, A3, Aint, Am,Ax, e Ael;
  • Subgrupos do tipo B são menos comuns mas já foram descritos 33 variantes para ele. Os principais são: B1, B3, Bm, e Bx;
  • Diversos subgrupos já foram descritos para o tipo O. Como principais, podem ser apontados em brancos e negros o tipo O¹ que corresponde a 50-60% dos genes O, o O2 que responde por aproximadamente 5%,e o O¹v que responde pelos outros 40%. O O5 presente em 90-100% dos indígenas sul-americanos, e o Oh, conhecidos como Bombay e Para Bombay.

Na prova cruzada o teste das hemácias do doador/paciente é feito expondo-as a um soro monoclonal, logo, são soros destinados ao antígeno mais frequente dos grupos ABO. Os colaboradores são treinados intensivamente para identificar o padrão dos testes que levam a desconfiança de subgrupos ABO e como identificá-los corretamente, no entanto, o risco de falhas nesta etapa precisam ser observadas com a gravidade devida, mesmo que sejam raras.

Vale recordar que mesmo utilizando técnicas e reagentes corretos, a sub centrifugação, ou a ultra centrifugação dos cartões em gel, também promovem falsos resultados positivos e negativos.

A única maneira de efetivamente assegurar, e nunca mais precisar repetir a tipagem ABO Rh seria a genotipagem do doador, porém esta ainda é uma alternativa muito cara, disponível em poucos centros, usada com parcimônia mesmo entre pacientes, e não vale a pena ser empregada em doações considerando que frequentemente as pessoas doam sangue apenas uma vez na vida, esporadicamente, ou não doarão várias vezes no mesmo centro.

É importante ressaltar que o maior risco dos erros de identificação de uma bolsa de sangue, é o que pode advir da transfusão deste hemocomponente em uma pessoa. Frequentemente bolsas de sangue são selecionadas a dedo para pacientes que demandam transfusão crônica e tem restrições de antígenos devido a sensibilizações prévias, se tal paciente recebe uma bolsa identificada incorretamente o melhor cenário que se pode esperar é uma reação transfusional em que houve “apenas” sintomas como fortes dores abdominais, febre e hemólise vascular da bolsa (ou seja, perda da transfusão nos vasos), e o pior cenário esperado, é a morte do paciente.

“A reação entre os anticorpos do receptor e antígenos do doador pode ter consequências graves, seguidas de alterações imunológicas e bioquímicas que podem levar a morte em um período de dez a vinte minutos após o início da transfusão de apenas 100 ml de concentrado de hemácias.” (GIRELO et al.)4   

 

*Letícia Farias Borges – Engenheira de Produção e pós graduada em Hemoterapia.

 

BIBLIOGRAFIA

1 – BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n° 158, de 4 de Fevereiro de 2016.Redefine o regulamento técnico de procedimentos hemoterápicos. Retrieved from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2016/prt0158_04_02_2016.html

2 – Oliveira et al (2013) “Conceitos Básicos Aplicados em Imuno Hematologia”. Retrieved from:  http://www.epsjv.fiocruz.br/upload/Material/L226.pdf

3 – Bio-Manguinhos (2010). “O que são anticorpos monoclonais?”. Retrieved from: https://www.bio.fiocruz.br/index.php/br/perguntas-frequentes/227-o-que-sao-anticorpos-monoclonais

4 – Girelo AL; Kühn T. (2002). “Fundamentos da Imunohematologia Eritrocitária” 2° Edição. Publicado pela Editora SENAC.

5 – Treinamento da BIO-RAD. “A expressão fenotípica do Antígeno D pode varias quantitativamente e qualitativamente”. Retrieved from:  file:///C:/Users/MASTER/Downloads/rh2016-parte4.pdf

6 – Nardoza et al (2010) . “Bases moleculares do sistema rh e suas aplicações em obstetrícia e medicina transfusional”. Retrieved from: https://www.scielo.br/pdf/ramb/v56n6/v56n6a26.pdf

 

 

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