Erros no Processamento e Leitura dos Cartões em Gel – Drogas e Idade

23, January de 2021

A idade das amostras ou do paciente, e o grau de hemólise de uma amostra de sangue ou hemácias teste, podem influenciar na potência da reatividade observada nos cartões.

 

 

Amostras com diferentes graus de hemólise, a amostra a esquerda é válida

 

A presença de hemólise em um reagente imunohematológico já é suficiente para o controle de qualidade reprovar o uso do material e retirá-lo da rotina³, mas nada pode ser feito com uma amostra de bolsa antiga do estoque ou se o paciente já está hemolisando por algum motivo. Com o passar do tempo, as amostras tendem a hemolisar ou apresentar pequenas formações de coágulos, uma amostra severamente hemolisada deixa poucas hemácias viáveis em oferta para reação, e também deixa todo o fundo do poço avermelhado dificultando a leitura. Coágulos por sua vez, como já estão agregados tendem a formar falsos positivos, portanto não se deve utilizar amostras coaguladas para realização de tais testes, especialmente se o centro ainda os realiza em tubo.

A própria idade do paciente pode ser um fator de interferência. Ao nascimento, os únicos anticorpos que estão em circulação no bebê são aqueles herdados da mãe (que pode ter um fenótipo distinto, e inclusive CONTRA o bebê, como na DHRN), estes anticorpos naturais serão desenvolvidos conforme a criança cresce e é exposta á bactérias, fungos e vírus, o contato com o mundo externo levará o sistema imunológico da criança a desenvolver anticorpos específicos contra a infecção experimentada, e por semelhança, anticorpos naturais contra os antígenos eritrocitários.

“(…) No sistema ABO por exemplo, anticorpos formam-se contra antígenos não presentes no indivíduo, sem necessidade de contato prévio com o antígeno. Sabe-se que as bactérias que começam a colonizar o trato intestinal a partir do nascimento possuem açúcares nas paredes celulares; consequentemente são essas bactérias que irão estimular a formação de anticorpos anti-A, anti-B. Também ocorre imunização por meio da alimentação, exposição á poeira, etc.” ¹

Apenas após os 3 anos de idade, pode-se esperar que uma criança apresente anticorpos próprios contra antígenos eritrocitários. A titulação (quantidade) dos anticorpos em corrente sanguínea também decresce conforme o avanço da idade, voltando a ser tão baixa quanto o de uma criança e interferindo novamente na potência das reatividades.

“Os anticorpos do sistema ABO aparecem espontaneamente depois dos 3-6 meses de idade, com pico de produção dos 5 aos 10 anos de idade e com diminuição progressiva na velhice.” ²

Doenças, e principalmente os medicamentos (drogas) utilizados no tratamento das mesmas também desempenham um papel fundamental no comportamento das hemácias e resultados observados em cartão. Algumas drogas tendem a aproximar-se das hemácias e ficar em seu entorno ou de alguma maneira interagir com a superfície do eritrócito marcando-o para destruição (Metildopa, penicilina, cefalosporinas, surami, cisplatin, alguns analgésicos, antibióticos, antipsicóticos, anticonvulsionantes, antiepiléticos)1-4 consequentemente em contato com um reagente (Soro de Coombs), o mesmo adere à superfície da droga produzindo um falso positivo, como se houvessem anticorpos aderidos á hemácia, e às vezes, não tem nada!

Outras medicações são mais problemáticas, a estrela da vez em bancada atualmente é o Daratummumab (Darzalex). É uma droga recentemente aprovada pelo FDA e Anvisa para tratamento de mieloma múltiplo, e a grande estratégia dessa medicação é usar o próprio sistema imunológico do paciente para combater um tumor. Tumores são recobertos de terminações CD38+, o Daratummumab se liga ao CD38+ sinalizando às natural killers que aquela célula está marcada para destruição, e dessa forma o próprio sistema imunológico do paciente combate o tumor ou, ao menos o reduz.5-6

O problema é que as terminações CD38+ estão presentes em várias outras células além das do tumor, inclusive, as hemácias! O paciente pode (ou não) estar sensibilizado por algum anticorpo eritrocitário, mas enquanto não se consegue eliminar o anticorpo anti-CD38 que está aderido á ela, o painel inteiro e todos os processos realizados em cartão serão completamente positivos e com reações 4+. É desesperador ver um teste assim porque não dá pra saber se a pessoa tem aloanticorpo, autoanticorpo, combinações múltiplas dos dois ou se você fez algo errado.

O único resultado que não é afetado é a tipagem ABO RhD e os testes permanecem assim por meses (3-6 meses) após a interrupção do tratamento com Dara. Existe apenas um soro no mercado que oferece anti-CD38 para reduzir a interferência, e em sua ausência, o processo de mitigação do Daratummumab é extenso, com muitos passos de execução, leva facilmente entre 2 a 3 horas por amostra, e ainda podem ter necessidade de repetição já que o processo pode causar hemólise.

Idade, medicação, doença, material utilizado, condição da amostra, limitações dos reagentes, efeito de dose, etnia, como foi executado o processo… Ter acesso a esse tipo de informação, e tê-las em mente ao longo do processo, é fundamental para legitimar um resultado observado ou, desconfiar do mesmo e tomar uma decisão informada.

 

*Letícia Farias Borges – Engenheira de Produção e pós graduada em Hemoterapia.

 

BIBLIOGRAFIA

1 – Girelo AL; Kühn T. (2002). “Fundamentos da Imunohematologia Eritrocitária” 2° Edição. Publicado pela Editora SENAC.

2 – Oliveira et al (2013) “Conceitos Básicos Aplicados em Imuno Hematologia”. Retrieved from:  http://www.epsjv.fiocruz.br/upload/Material/L226.pdf

3 –  Ministério da Saúde. (2014). “Imunohematologia laboratorial” 1° Edição. Retrieved from: https://www.cevs.rs.gov.br/upload/arquivos/202004/27095914-imuno-hematologia-laboratorial.pdf

4 – Ferreira et al. “Alterações hematológicas induzidas por medicamentos convencionais e alternativos”. Revista Brasileira de Farmácia. Retrieved from:  https://www.rbfarma.org.br/files/rbf-94-2-2-2013.pdf

5 – Onconews. 2015. “FDA aprova Daratumumab em mieloma múltiplo”. Retrieved from: https://www.onconews.com.br/site/noticias/noticias/ultimas/1615-fda-aprova-daratumumab-em-mieloma-m%C3%BAltiplo.html

 

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