Erros no Processamento e Leitura dos Cartões em Gel – Manuseio, Confusão com Amostras, “Pó Que Some” e a Importância Vital do Treinamento

23, January de 2021

Um dos erros mais comuns e graves que ocorrem no dia a dia de operações de laboratórios é a falta de identificação ou, até mesmo, fazê-la incorretamente.”¹

 “A fase pré-analítica concentra a maior frequência de erros associados a exames laboratoriais, segundo estudos realizados no Departamento de Medicina Laboratorial na Itália e no Laboratório Clínico em um Hospital na Índia, (…) indicam que a maioria dos erros estão na identificação das amostras, no preenchimento inadequado os tubos, na hemólise e a na falta de informações sobre o paciente”

Frequentemente, a manipulação de uma amostra de paciente não se resume a pipetar uma porção do reagente e uma porção da amostra no cartão, centrifugar e ler o resultado, quem dera sempre fosse assim!

Existem processos que podem vir a ser necessários antes de qualquer manipulação com o cartão para tratamento da amostra, seja para preparar o meio (separação de soro e lavagem de hemácias três vezes), potencializar (LISS, Encubação, Coombs3) e ou direcionar a busca por um resultado “diminuindo” o background noise (eluição4, adsorção5, thiol, papaína, ficina, bromelina, cloroquina, glicina6). O colaborador pode vir a fazer uso de uma técnica ou várias sequencialmente até chegar ao diagnóstico.

Conforme a lei, a identificação dos tubos laboratoriais destinados aos testes devem ser rotuladas com códigos que permitam a identificação do paciente ou doador (RDC 34 Art. 37). Mas todos esses processos em bancada que levam ao diagnóstico são realizados em tubo simples, com identificação realizada manualmente pelo próprio colaborador.

Por esta razão, é muito importante que o colaborador identifique os tubos, não apenas referenciando o paciente mas também que processo ou que etapa do processo está sendo realizado no tubo em questão. Se necessário, o colaborador pode tomar notas paralelamente do que está fazendo para que não perca o raciocínio ou se confunda, já que raramente um colaborador tem o luxo de se dedicar exclusivamente a uma análise por vez, um paciente por vez na grade, ou ter uma máquina particular.

Além de nomear as amostras de maneira que permita identificação de paciente e processo realizado (se aplicável), o próprio manuseio das amostras e reagentes na bancada pode ser responsável por erros no diagnóstico se o operador não estiver muito atento.

Ter organização na grade, posicionando os vários tubos de um mesmo paciente em sequência, manter um espaço vago entre os tubos de um paciente e de outro que esteja sendo feito simultaneamente é fundamental para evitar confusões.

As tampas dos reagentes, seja em conta gotas ou rosca simples, são idênticas em vários kits. O colaborador precisa ter muita atenção quando abre vários reagentes de uma vez para colocar cada tampa respectivamente a frente de seu vidro para evitar contaminação cruzada ao fechar, precisa ter atenção para guardar os reagentes sempre na mesma ordem do estojo que vai de um (1) ao dez (10), e atenção redobrada ao pingar cada reagente em seu respectivo poço (reagente 1 no poço/tubo 1, reagente 2 no poço/tubo 2…) especialmente porque sempre sobram poços sem uso nos cartões que em algum momento da rotina precisarão ser usados, então de repente, um teste que só precisaria de 6 poços (um cartão completo) pode estar espalhado em até 6 cartões diferentes com anotações de testes anteriores e vários poços abertos…

Imagens mostrando poços sem uso em cartões

Não seria mais prudente se cada reagente fosse aberto apenas quando usado, e os cartões fossem imediatamente descartados após o uso mesmo que tenham poços extras? Sim, mas não é viável.

Os cartões em gel têm um custo alto e muitos centros ainda não conseguiram agregar a tecnologia por conta do preço de aquisição, se os mesmos fossem descartados apenas porque sobraram poços, o custo no orçamento do centro facilmente dobraria.

A questão de se abrir os reagentes um por vez, imediatamente fechar e devolver ao estojo é viável em bancada, mas não em processos automatizados. Nestes, é necessário dispor todos os reagentes e amostras abertos para uso dentro da máquina (imagem 5). Os processos realizados no interior da máquina são totalmente seguros porque amostras, reagentes e cartões são escaneados antes do início do procedimento, mas nenhuma máquina no mercado desrosqueia o produto ou tem espaço na máquina para colocar as tampas em frente aos respectivos reagentes, o colaborador precisa deixar todas do lado de fora (às vezes, por longos períodos) e lembrar da sequência quando encerrar o procedimento.

Imagem 5: máquina de processo automatizado em usoMáquina de processo automatizado em uso
Outra possibilidade de erro, embora menor, é a mistura de reagentes de diferentes lotes. O controle de qualidade faz a liberação antes do uso a cada mudança de lote, e revalida diariamente a eficiência dos reagentes, porém, entre os dias finais de validade de um lote e a transição para o próximo na rotina, é possível que reagentes de dois lotes diferentes coexistam em atividade no laboratório. Se dois ou mais colaboradores que dividem kits de reagentes na mesma bancada não atentarem para o retorno ao estojo imediatamente após o uso, e os deixarem espalhados pelo campo de trabalho, é possível que um lote se confunda com outro impactando no resultado.  Exemplos de reagentes com tampas iguais

Por fim, abordaremos nesse artigo o fenômeno do “pó que some”. Mas antes de tentar entender o que é o “pó que some”, entenda como são realizadas as leituras de reatividade em um cartão em gel.

A potência de uma reatividade é medida em cruzes (+), a reatividade mais forte e um “perfeito positivo” é chamada de quatro cruzes (4+), e a ausência de reatividade, ou um “perfeito negativo” é chamado de negativo ou zero cruzes. Os resultados de 3+, 2+ e 1+ também são resultados positivos, porém ficaram espalhados ao longo do poço porque o título de anticorpos no soro estava reduzido por algum motivo, ou porque haviam menos sítios de ligação disponíveis na hemácia, para citar apenas os motivos principais. A dupla população (último poço da imagem) será explicada em outro artigo, no momento, basta saber que por algum motivo (transfusão incompatível ou transplante de medula por exemplo) existem duas populações distintas de hemácias coexistindo no mesmo meio

“Pó que some” é um expressão usada nos laboratórios para se referir a uma reatividade que em um momento era visível porém mais fraca que 1+ (poucas partículas em suspensão), e logo em seguida, ou aos olhos de um segundo observador, aparentar ser um completo negativo. Os sistemas automatizados são de grande ajuda na diferenciação do pó para o negativo porque não dependem da subjetividade do julgamento do observador, a máquina lança um feixe de luz no cartão, e se houver uma única hemácia que seja em suspensão no gel capaz de produzir uma sombra ele acusará pó ou 1+.

Mesmo o pó deve ser interpretado como resultado positivo e investigado, para determinar se a reatividade fraca é resultado de um baixo título de anticorpos, um efeito de dose, um antígeno variante, quantidade de antígeno pingado no poço insuficiente para gerar reação, “transferência” de outro poço por contaminação cruzada da pipeta, reagente, amostra ou abertura do selo que fecha o cartão, efeito da agitação excessiva na ressuspensão de um botão (se teste feito em tubo), ou um falso positivo por centrifugação insuficiente.

Uma máxima importante a ser reforçada neste cenário, é que mesmo um resultado negativo NÃO É GARANTIA de ausência de reações transfusionais. Por lei, o período total da transfusão deve ser monitorado e nos 10-15 primeiros minutos o acompanhamento deve ser feito ao lado da cama do paciente (RDC 34, Art.143)7, o paciente também deve ser monitorado por 24 horas para sinais de reações transfusionais imediatas, e também pelo período posterior buscando sinais de reações transfusionais tardias. Vale lembrar que o centro deve registrar em prontuário e investigar a causa de TODAS as reações transfusionais (Art. 146), e os sintomas destas podem ocorrer até 30 dias APÓS a transfusão8-9.

Em todas as situações possíveis de gerar erros apresentadas neste artigo, todas podem ser evitadas, ou ao menos reduzidas, pelo treinamento contínuo de pessoal. A atualização técnica dos funcionários é prevista pela RDC 34, e deve ser adicionado aos registros do centro, comprovando que todo o pessoal é capacitado a realizar o trabalho.

1º O serviço de hemoterapia deve garantir programa de capacitação e constante atualização técnica de todo o pessoal envolvido nos procedimentos, mantendo os respectivos registros, bem como cumprir as determinações legais referentes à saúde dos trabalhadores e instruções de biossegurança.

(RDC 34, Art. 7°)

*Letícia Farias Borges – Engenheira de Produção e pós graduada em Hemoterapia.

 

BIBLIOGRAFIA

1 – AUTOLAC. “6 Práticas para o Manuseio de Amostras Biológicas”. Retrieved from: https://autolac.com.br/blog/boas-praticas-para-o-manuseio-de-amostras-biologicas/ Acessado em 22/09/2020.

2 – FIOCRUZ (2013). “Principais erros na fase pré analítica do laboratório prestador de serviço no hospital Getúlio Vargas em Sapucaia do Sul” . Retrieved from: https://www.arca.fiocruz.br/bitstream/icict/34816/2/nathalia_xavier_icict_espec_2013.pdf

3 – LORNE LABORATORIES LTDA. “Kit de Eluição”. Retrieve from: http://www.biosys.com.br/wp-content/uploads/2015/10/BL0199-RED-CELL-ELUTE-REV06-11-2014.pdf

4 – BYOLINE. Girello, AL. “Métodos”. 2016. Retrieved from:   file:///C:/Users/leticia.borges/Downloads/metodos_2016-parte4.pdf

5 – Abiko, CK. “Aplicação da técnica de glicina ácida/EDTA e avaliação da eficácia no tratamento de hemácias com teste direto da antiglobulina positivo”. Retrieved from: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/17/17155/tde-07062017-145740/publico/CeliaKazueAbiko.pdf

6 – ANVISA. AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. Resolução da diretoria colegiada- RDC nº 34, de 11 de Junho de 2014. Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br/documents/10181/2867975/%281%29RDC_34_2014_COMP.pdf/ddd1d629-50a5-4c5b-a3e0-db9ab782f44a. Acessado em: 24/07/2020.

7 – MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde Departamento de Gestão da Educação na Saúde (2013). “Técnico em Hemoterapia” Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/tecnico_hemoterapia_livro_texto.pdf Acessado em 24/09/2020.

8 – MSD. Sarode, Ravindra. “Complicações da Transfusão” de Novembro de 2018. Disponível em:  https://www.msdmanuals.com/pt-pt/profissional/hematologia-e-oncologia/medicina-transfusional/complica%C3%A7%C3%B5es-da-transfus%C3%A3o . Acessado em 24/09/2020.

 

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